top of page

"De que vai nos servir censurar a violência ficcional? Acho interessante a alteridade, a arte b

Mariana Waechter a autora da HQ de sucesso “Medeia” fala ao Capitão Nada sobre a cena dos quadrinhos, mercado, arte e feminismo em um perfil completo da artista.

 

Que a internet mudou o mundo numa velocidade vertiginosa, não há dúvidas. A gente sempre pensa logo de cara em tecnologias, praticidades, itens de consumo. São necessidades criadas. As principais mudanças, sem dúvida, se deram no aspecto humano. A vida social-virtual acelerou discussões e trouxe outras totalmente novas. Lá em 2010, que nem faz tanto tempo assim, temas como o empoderamento feminino não tinham uma lasquinha do espaço que têm hoje. Certamente muita gente teria que olhar no dicionário para entender o significado de “empoderamento”, “sororidade” e etc. E quando a caravana avança, ninguém pode parar. Caminhamos para frente em muitos outros sentidos, sobretudo no universo pop. Graças a eras e eras de repressão, sempre foi raro ver mulheres se destacando nesse meio. Mas isso também está mudando.


Autora de quadrinhos como “Medéia” (2014) e “É favor manter a calma – são apenas uns loucos que da casa de loucos fugiram” (2015), Mariana Waechter é prova disso. “Do ponto de vista de quem produz, acho que o aumento da produção feminina nos quadrinhos é algo positivo. Serve para compensar essa defasagem que a mulher teve ao longo da História da Arte. Essa falta de estímulo que resultou em uma participação muito pequena e de pouco reconhecimento por tanto tempo”, defende Mariana. Apesar de não se considerar uma militante feminista, a quadrinista acredita que como meio expressivo para problematização e reivindicação, os quadrinhos precisam ser mais explorados e podem ser uma forte ferramenta de formação, discussão política, de reflexão comportamental e psicológica. “Acho que o quadrinho é empoderador em si, meramente por ter uma produção tão acessível como meio expressivo”.


Com a internet se tornando a principal plataforma de interação entre seres humanos, muitos temas sensíveis, além da causa feminista, ganharam destaque. O que, convenhamos, é ótimo. Mais um sinal de evolução. Ponto para a internet! Como efeito colateral, temos gente que fica cada vez mais à vontade para destilar seus preconceitos e práticas violentas, escondidos atrás de um computador. Entre as violências mais comuns na web está a objetificação da mulher. Isso também ocorre, infelizmente, dentro do universo pop. O problema é que intolerância tem gerado intolerância.


Imagem retirada da HQ Medéia

Ações proibitivas são uma violência a qualquer forma de arte e Mariana Waechter não pensa diferente. “Ocorreu-me recentemente a questão da exploração de imagens polêmicas, como capas de HQ constrangedoras ou ofensivas para mulheres, algo assim. Nesse caso, acho que é importante refletir sobre essas representações, mas acho bem complicado querer abolir uma representação que não está "de acordo" com uma linha de pensamento. De que vai nos servir censurar a violência ficcional? Ou criar um tabu em relação a isso? Acho interessante a alteridade, a arte boa revidar da arte de merda”.


No campo da arte, o trabalho de Mariana vem evoluindo de forma notável. No seu processo de evolução, a quadrinista foi aluna do premiado autor Lourenço Mutarelli. Mariana faz parte de uma safra de artistas que se destacam por suas experimentações, como Alcimar Frazão, Paulo Ito, Victor Zalma, Benson Chin e Breno Ferreira, da Miolo Frito, Eiko, Crumbim e Fábio Q. “A gente conversava bastante e tomava muito café, na época eu estava no processo de criação do ‘Medeia’. Foi ótimo produzir com o pitaco de tanto artista no processo, inclusive o Mutarelli, de quem admiro o trabalho pra caramba”, relembra ela, com saudades dos tempos do curso de HQ autoral, ministrado lá pelos idos de 2012.


Sobre “Medeia”, seu trabalho de maior destaque até o momento, Mariana Waechter vê uma porção de representações que são aplicáveis à nossa realidade, mesmo se tratando de uma tragédia grega de milhares de anos. A violência presente na história e o modo como ela é praticada são alguns desses símbolos. Os assassinatos em Medeia são cometidos pela protagonista. Aí reside a grande crise moral que Eurípedes incita no leitor da tragédia, porque na verdade ela é vítima e agente de maldade, ao mesmo tempo. Inicialmente, é induzida pelos deuses do Olimpo a se apaixonar perdidamente por Jasão, para que o ajudasse a ter sucesso. “De certa forma, sua individualidade e poder sobre si são negados nesse momento - o que é uma analogia forte da condição da mulher na época - quando ela vira instrumento dos trâmites dos deuses e tem sua vontade e ação manipuladas. Mas ainda assim ela é inteligente, safa, ardilosa - planeja, engana, retalha”, diz a autora.


Mesmo não se identificando como uma militante feminista, Mariana diz que sempre “agiu feminista”. Basta um breve bate papo com ela para sacar que sim, isso é verdade. “Não gosto de alguns caminhos que o discurso feminista tomou atualmente. É importante como paradigma coletivo, o de que as mulheres também são fortes, capazes, dignas de respeito e merecem direitos iguais, no entanto vejo uma certa indução à aderência compulsória ao movimento. Esse lance de "se você é a favor de direitos iguais entre os gêneros, é feminista e não sabe" às vezes soa dogmático, como se fosse apropriado não questionar contradições, ou ignorar pontos importantes a serem discutidos, tipo a questão do recorte de classe na opressão sistêmica. Acho que me interesso mais por temáticas que transcendem esse lance de gênero”. É a famosa luta de classes, que no fim do dia se sobrepõe a tudo, não é mesmo?!

Não é só discurso. Na prática, Mariana e outras mulheres autoras têm feito o universo pop refletir sobre quantos talentos não foram desperdiçados durante os tempos de repressão feminina. Ainda há muito a ser conquistado e, apesar dos avanços, o caminho até a abolição completa do machismo e do patriarcado na sociedade e, consequentemente, nas artes, ainda é longo. Especialmente no Brasil. Mas e o papel da arte nesta caminhada?


Como resposta para nossa pergunta de um milhão de dólares, Mariana Waechter nos deixa com uma reflexão. “O cenário ainda é bem grave, não por conta de qualquer crise ficcional que foi propagandeada pela plutocracia, mas por ter essa paranóia coletiva se instalando socialmente, uma polarização se intensificando e casos de violências absurdas sendo cometidas pelo Estado contra as pessoas, e as próprias pessoas criando cisões e inimigos entre si. Me pergunto todos os dias qual é o papel da arte ou o quanto é efetiva a denúncia e a ficção nesse cenário, onde realidade é devastadora. Estou tentando descobrir”.

bottom of page